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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Existem brechas no reacionarismo


No dizer da historiadora Mary Del Priore, diariamente juntamos as pequenas coisas do cotidiano e rápido esquecemos, não desejando modificar, discutir, como se fosse tudo simples e evidente1. Assim fazemos muitas vezes ao assistir um telejornal, uma novela, um filme, dentre diversas outras produções sem nos darmos conta e nem de relance passar por nossas cabeças interesses ocultos.
As emissoras de televisão fazem de seus agentes propagadores de dogmas sociais pertencentes a pequenas elites, com interesses interligados na busca da perpetuação de hegemonias reacionárias e exclusão de uma maioria. Aqui volto-me rapidamente para um episódio “ficcional global” que merece alguns parágrafos sobre o que pode não está explicito.
A Rede Globo de Televisão desponta-se, e isso de forma inquestionável, como uma das mais competentes em divulgar seus pensamentos, da forma mais atraente e dissimulada possível. Seu anseio pela permanência de seu poderio social faz-se de várias formas e feitio, desde os primeiros noticiários do dia, passando pelos programas de auditório, novelas, até finalizar com as “notícias mais importantes”.
É ingênuo imaginar que qualquer programa que a Globo leva até nossas casas, de menor duração que seja, não passe por um potente e eficiente crivo ideológico. Cada segundo é cuidadosamente pensado e analisado por seus mentores, seus agentes ferrenhos e muito bem remunerados. No entanto, esses delegados de confiança possuem um grau de liberdade proporcionado por suas funções.
Para melhor explicar a última afirmação, peço licença ao leitor que ainda não desistiu do texto para contar uma rápida história. Três amigos passam a infância juntos, dois formam um casal claro e de olhos belos, e o outro fica com as mágoas da rejeição de um amor velado. A história desenrola-se com incertezas, tramas e dores que a vida de qualquer um possui. A dupla casa-se, e na festa matrimonial deparamo-nos com Fernando Anitelli, vocalista da banda O Teatro Mágico acendendo ainda mais os ânimos.
Concordo com o leitor sobre a superficialidade do contado e a inexistência de algo anormal ou inédito em tal narrativa que possa atrair maiores reflexões, até mesmo por tratar-se de uma síntese em poucas linhas sobre uma novela da Rede Globo. A trama a que refiro-me é Flor do Caribe, que fechou seus trabalhos no dia 13 de Setembro de 2013 ao som de um grupo que aos poucos ganha crédito basicamente através da internet. A aparência de normalidade torna-se perpétua se informações novas não forem dadas. Mas isso cabe ao parágrafo seguinte.
O conjunto O Teatro Mágico ganha autoridade entre os brasileiros devido seu perfil traçado na música nacional. Menos por escolha que por necessidade de sobrevivência, a banda fez-se uma dos mais algozes críticos da indústria musical, denunciando através de redes sociais e shows a inacessibilidade das gravadoras, não bastando competência sonora, mas laços um tanto menos profissionais. Espanta-me tal representante da música independente ter vez novamente em uma novela global – a outra foi Viver a Vida, ambas escritas por Walther Negrão.
 
Não parece-me haver dúvida que tal participação é no mínimo inconveniente para as gravadoras e seu modelo tradicional, que são patrocinadoras da programação global e intimamente presentes nos investimentos da família Marinho. Somente sou capaz de chegar à uma conclusão: os tentáculos reacionários, tão ajustados conforme interesses e ambições, possibilitam ainda assim uma margem de liberdade à seus agentes, no caso, Walther Negrão, assim como – perdoem-me o nível da comparação – os trôpegos poderes públicos em sua burocracia quase falida.
Lógico que podemos conjecturar explicações mais simples para tal fato. Passemos então a duas delas. O horário da aparição deve ser levado em consideração: final de tarde para início de noite, os níveis de audiência não são exorbitantes, portanto, a aparição não mostra-se muito perigosa como se ocorresse em horário nobre. Ou talvez possamos levar em consideração a frequente tentativa de organizações que representam o que de mais há de conservador em tentar transmitir ares progressistas e revolucionários.
Para a última possibilidade apontada, outro ponto chama atenção. O cenário independente da música brasileira está crescendo rapidamente, propiciado em grande parte pela internet, com diversos artistas conquistando público e renome, por que justamente um dos que marcam presença no batalhão de frente contra a indústria musical conquisto a oportunidade, se existem tantos outros bem mais discretos?
É inegável que tais aparições - duas novelas e uma no programa "Encontro com Fátima Bernardes" - devem-se a um conjunto de fatores que a isso propiciaram, inclusive a construção de uma falsa abertura dentro das organizações hegemônicas. Mas é necessário destacarmos a existência, dentre as linhas ideológicas que buscam a manutenção das desigualdades, de algumas escassas vozes de “libertação” e autonomia. Para juntar-se à minha fala, compartilho algumas linhas escritas pelo historiador Giovanni Levi:
Assim, toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades sociais. A questão é, portanto, como definir as margens – por mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o governam.” 2

É verdade que cada cena de novela, de qualquer emissora de televisão que seja passa pela censura cuidadosa de delegados “fiéis” a dogmas superiores, porém, também é ingenuidade acreditarmos que o que nos chega, além de pensamentos dos reacionários seniores, são também manifestações individuais e independentes, algumas vezes conflitantes com seus provedores, alcançando-nos através de ambiguidades e imperfeições existentes em toda forma de poder.
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1PRIORE, Mary Del. História do Cotidiano e Vida Privada. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia / Ciro Flamiron Cardoso, Ronaldo Vainfas (Org.) Rio de Janeiro: Elsevier, 1997 – 19° Reimpressão. Pág. 259
2 LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-história. In: A Escrita yda Históri: novas perspectivas / Peter Burke (org.) tradução de Magda Lopes – São Paulo: Editora UNESP, 1992. PP. 133-162. Pág. 135

Um comentário:

  1. Ótimo texto, muito bem escrito. Lembrei de uma aula de História do Brasil Contemporâneo, em que o professor passou um documentário sobre a participação decisiva da Rede Globo para a vitória do Collor contra o Lula, nas primeiras eleições democráticas do Brasil pós-ditadura militar, em 1989. Um colega nosso até falou assim, em tom jocoso: "Professor, a novela está tão boa e o senhor passa um negócio desse...". Ri demais comigo mesmo, porque mesmo compreendendo bem o nível de manipulação ideológica da televisão, não dispenso uma boa novela, seja da Globo ou não. Assim como não dispenso livros, séries e filmes que me interessam e/ou me divertem.

    Fabrizio Cunha, professor substituto do Estado e graduando em Licenciatura Plena em História, pela Universidade Federal do Piauí - UFPI.

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