No dizer da historiadora Mary Del Priore, diariamente juntamos as
pequenas coisas do cotidiano e rápido esquecemos, não desejando
modificar, discutir, como se fosse tudo simples e evidente1.
Assim fazemos muitas vezes ao assistir um telejornal, uma novela, um
filme, dentre diversas outras produções sem nos darmos conta e nem
de relance passar por nossas cabeças interesses ocultos.
As emissoras de televisão fazem de seus agentes propagadores de
dogmas sociais pertencentes a pequenas elites, com interesses
interligados na busca da perpetuação de hegemonias reacionárias e
exclusão de uma maioria. Aqui volto-me rapidamente para um episódio
“ficcional global” que merece alguns parágrafos sobre o que pode
não está explicito.
A Rede Globo de Televisão desponta-se, e isso de forma
inquestionável, como uma das mais competentes em divulgar seus
pensamentos, da forma mais atraente e dissimulada possível. Seu
anseio pela permanência de seu poderio social faz-se de várias
formas e feitio, desde os primeiros noticiários do dia, passando
pelos programas de auditório, novelas, até finalizar com as
“notícias mais importantes”.
É ingênuo imaginar que qualquer programa que a Globo leva até
nossas casas, de menor duração que seja, não passe por um potente
e eficiente crivo ideológico. Cada segundo é cuidadosamente pensado
e analisado por seus mentores, seus agentes ferrenhos e muito bem
remunerados. No entanto, esses delegados de confiança possuem um
grau de liberdade proporcionado por suas funções.
Para melhor explicar a última afirmação, peço licença ao leitor
que ainda não desistiu do texto para contar uma rápida história.
Três amigos passam a infância juntos, dois formam um casal claro e
de olhos belos, e o outro fica com as mágoas da rejeição de um
amor velado. A história desenrola-se com incertezas, tramas e dores
que a vida de qualquer um possui. A dupla casa-se, e na festa
matrimonial deparamo-nos com Fernando Anitelli, vocalista da banda O
Teatro Mágico acendendo ainda mais os ânimos.
Concordo com o leitor sobre a superficialidade do contado e a
inexistência de algo anormal ou inédito em tal narrativa que possa atrair maiores reflexões, até
mesmo por tratar-se de uma síntese em poucas linhas sobre uma novela
da Rede Globo. A trama a que refiro-me é Flor do Caribe,
que fechou seus trabalhos no dia 13 de Setembro de 2013 ao som de um
grupo que aos poucos ganha crédito basicamente através da internet.
A aparência de normalidade torna-se perpétua se informações novas
não forem dadas. Mas isso cabe ao parágrafo seguinte.
O conjunto O Teatro Mágico ganha autoridade entre os
brasileiros devido seu perfil traçado na música nacional. Menos por
escolha que por necessidade de sobrevivência, a banda fez-se uma dos
mais algozes críticos da indústria musical, denunciando através de
redes sociais e shows a inacessibilidade das gravadoras, não
bastando competência sonora, mas laços um tanto menos
profissionais. Espanta-me tal representante da música independente
ter vez novamente em uma novela global – a outra foi Viver a
Vida, ambas escritas por Walther Negrão.
Não parece-me haver dúvida que tal participação é no mínimo
inconveniente para as gravadoras e seu modelo tradicional, que são
patrocinadoras da programação global e intimamente presentes nos
investimentos da família Marinho. Somente sou capaz de chegar à uma
conclusão: os tentáculos reacionários, tão ajustados conforme
interesses e ambições, possibilitam ainda assim uma margem de
liberdade à seus agentes, no caso, Walther Negrão, assim como –
perdoem-me o nível da comparação – os trôpegos poderes públicos
em sua burocracia quase falida.
Lógico que podemos conjecturar explicações mais simples para tal
fato. Passemos então a duas delas. O horário da aparição deve ser
levado em consideração: final de tarde para início de noite, os
níveis de audiência não são exorbitantes, portanto, a aparição
não mostra-se muito perigosa como se ocorresse em horário nobre. Ou
talvez possamos levar em consideração a frequente tentativa de
organizações que representam o que de mais há de conservador em
tentar transmitir ares progressistas e revolucionários.
Para a última possibilidade apontada, outro ponto chama atenção. O cenário independente da música brasileira está crescendo rapidamente, propiciado em grande parte pela internet, com diversos artistas conquistando público e renome, por que justamente um dos que marcam presença no batalhão de frente contra a indústria musical conquisto a oportunidade, se existem tantos outros bem mais discretos?
É inegável que tais aparições - duas novelas e uma no programa "Encontro com Fátima Bernardes" - devem-se a um conjunto de fatores que a isso propiciaram, inclusive a construção de uma falsa abertura dentro das organizações hegemônicas. Mas é necessário destacarmos a existência, dentre as linhas ideológicas que buscam a manutenção das desigualdades, de algumas escassas vozes de “libertação” e autonomia. Para juntar-se à minha fala, compartilho algumas linhas escritas pelo historiador Giovanni Levi:
Para a última possibilidade apontada, outro ponto chama atenção. O cenário independente da música brasileira está crescendo rapidamente, propiciado em grande parte pela internet, com diversos artistas conquistando público e renome, por que justamente um dos que marcam presença no batalhão de frente contra a indústria musical conquisto a oportunidade, se existem tantos outros bem mais discretos?
É inegável que tais aparições - duas novelas e uma no programa "Encontro com Fátima Bernardes" - devem-se a um conjunto de fatores que a isso propiciaram, inclusive a construção de uma falsa abertura dentro das organizações hegemônicas. Mas é necessário destacarmos a existência, dentre as linhas ideológicas que buscam a manutenção das desigualdades, de algumas escassas vozes de “libertação” e autonomia. Para juntar-se à minha fala, compartilho algumas linhas escritas pelo historiador Giovanni Levi:
“Assim, toda ação social é vista como o resultado
de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do
indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não
obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e
liberdades sociais. A questão é, portanto, como definir as margens
– por mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um
indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que
o governam.” 2
É verdade que cada cena de novela, de qualquer emissora de televisão
que seja passa pela censura cuidadosa de delegados “fiéis” a
dogmas superiores, porém, também é ingenuidade acreditarmos que o
que nos chega, além de pensamentos dos reacionários seniores, são
também manifestações individuais e independentes, algumas vezes
conflitantes com seus provedores, alcançando-nos através de
ambiguidades e imperfeições existentes em toda forma de poder.
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1PRIORE,
Mary Del. História do Cotidiano e Vida Privada. In: Domínios da
história: ensaios de teoria e metodologia / Ciro Flamiron Cardoso,
Ronaldo Vainfas (Org.) Rio de Janeiro: Elsevier, 1997 – 19°
Reimpressão. Pág. 259
2
LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-história. In: A Escrita yda Históri:
novas perspectivas / Peter Burke (org.) tradução de Magda Lopes –
São Paulo: Editora UNESP, 1992. PP. 133-162. Pág. 135