Interessante ler ao embalo da música “A Outra”,
composição de Marcelo Campelo.
No
entorpecimento habitual do sono conseguiu lembrar-se de poucos, porém, desses
que passam numa velocidade suficiente para deixar uma marca visível, assim como
quando um carro, caminhão ou moto freiam bruscamente.
Começou pelo
mais recente, nada a ressaltar, quero dizer: nada a comentar sobre a ordem
embriagada das lembranças.
Lembrou que
aquele era diferente, pelo menos supunha, lhe fizera chorar mais do que os
outros, emagrecer muito mais que os outros, além de lhe humilhar
incalculavelmente mais que os outros. É que esse foi diferente, falou em uma
voz pouco compreendida pela mãe que fumava no quarto ao lado.
Tentou
entender por que esse teria sido diferente, afinal, começou como os outros: sem
grandes pretensões, esperanças, sentimentos ou qualquer coisa mais difícil de
explicar. Mas notou que aquele ódio de início normal teria permanecido por mais
tempo, teria ganhado palavras e desabafos a mais, extras, acha esse o melhor
termo?
É que, pelo
meu entendimento, odiou numa intensidade perigosa, daquelas que você sabe... Espero
que saiba, caso contrário se perderá. Intensidade que faz tremer as pernas,
respiração ofegar, que é capaz de afastar o sono na espera absurda de acordar,
e essa última diferença fora exatamente a que mereceria mais cautela, pois é
feito aquelas armadilhas em que não deixa nada no lugar, nada como era antes,
sempre leva um pedaço ao fim de tudo.
Embalado em
musicas sobre castelos que construíra em torno dos ódios para resguardá-los de
todos os males, resolveu não perder tempo lembrando-se do início, ou melhor, do
primeiro ódio, também acho que não compensava forçar a memória com ódio pouco,
que não passou de ligações noturnas para falsos risos e elogios, sem rixas ou
picuinhas, até por que, um ódio de verdade, estou falando daquele de verdade,
tem de ser capaz de sobreviver a espontaneidades, e espontaneidades vemos mais claramente
em rixas e picuinhas.
Resolveu
lembrar-se de um que até fazia questão: questão total, falou em um riso de quem
descobre o mundo. Talvez tenha sido por que esse ódio lhe mostrou o mundo, pelo
menos, mundo além daquele de imaginação em que vivia, distante da prática
sexual instintiva dos seres humanos.
É que esse foi
bom, muito bom, lhe fazendo chegar mais tarde em casa, numa quantidade de vezes
incapaz de ser lembrada, lhe fez gemer diferente, muito diferente daqueles
gemidos de dores aos quais se acostumara, não que não houvesse dor nesses
gemidos, mas tinha algo mais... Mas que droga, você está entendendo? É que para
eu é difícil falar sobre essas coisas, me sinto como se traindo o romantismo
que tanto me orgulho de possuir... Você acha que não? Bem, então, vamos seguir,
ainda nesse ódio.
É que esse
ódio durou bastante, teve de tudo um pouco: beijos, mordidas, gemidos,
mentiras, falsos risos e elogios em conversas noturnas, e o que também acho
fundamental: a espontaneidade das picuinhas e rixas. Esse deixara pelos
corredores colegiais um cheiro de coisa boa, de descoberta... Até que enfim,
esse é o termo exato: descoberta.
É que nesse
ele descobriu que amor e sexo não são primos distantes, formam um casal quase
que co-sanguíneo. Descobriu que nas tubulações que um ódio de verdade sofre, é
necessário de amor, e de sexo, bem unidos, juntos, em nome da superação. Até
que concordo com ele, vamos ser sinceros, não dá pra separar. Amor e sexo não
cabem nas falidas díades sociais: verdade ou mentira, bom ou ruim, cristão ou
pagão.
A verdade é
que ele percebeu bem cedo – não pense que penso que isso é ruim - que amor não
é algo completamente terno, sem beijo, desejo nem sexo, é uma mistura bem
gostosa: escolha, sorte, imaginação, prosa, poesia, cristianismo, um sentimento
pagão, amizade, algo divino, e animal.
O fim foi ruim, porém, três dias de dores
foram suficientes para expiar toda culpa da dor que causara, mas procure
compreender a velocidade dele: é fácil superar uma perda de algo que não
supomos grande quando estamos ocupando braços novos, com determinado calor em
que ainda procuramos o conhecimento.
Calor bom,
gostoso, que passou longe da ternura, mas acho as vezes que não chegou a ser
ódio, mas, consideremos que sim, é que passou um tanto rápido, porém, foi o
suficiente para deixar o que somente um ódio de verdade é capaz de deixar: um
pouquinho de mágoa e um enorme sabor de quero mais.
É que esse foi
leve, sem grandes preocupações com os tratados a dois, vou lhe confessar: essas
partes burocráticas são muito chatas quando o que mais se quer é odiar.
E esse ódio se
foi como veio, de forma leve, não tão leve a ponto de não magoar, mas o suficiente
para deixar a esperança dos braços se reencontrarem, esperança de um dia voltarem
a perder as pernas nas travessuras das noites eternas.
Cansado de
lembrar, resolveu lembrar-se de uma balada que ouvira muito antes de deitar: Paz, eu quero paz, já me cansei de ser a
última a saber de ti, se todo mundo sabe quem te faz chegar mais tarde, eu já
cansei de imaginar você com ela, diz pra mim se vale a pena amor: a gente ria
tanto desses nossos desencontros, mas você passou do ponto, e agora já não sei
mais, eu quero paz... Quero dançar com outro par, pra variar amor.